 
                  Por que somos tão selvagens no trânsito?
Rush.  Era com essa palavra inglesa que no Brasil de décadas atrás nos  referíamos aos horários de pico no trânsito - o começo e o fim do dia. O  rush, naquela época, era traduzido em uma pessoa chegar 15 minutos mais  tarde a algum lugar. Sim, míseros 15 minutos eram sinal de que as  coisas não iam muito bem. Falar em atraso semelhante hoje equivale a  dizer que (ufa, graças a Deus!) chegamos na hora, fomos pontuais. O  tempo gasto em deslocamentos nos grandes centros urbanos tem piorado ano  a ano. Moradores de cidades como São Paulo, por exemplo, perdem cerca  de 2 horas e 40 minutos diários dirigindo num ritmo de tartaruga. É um  teste de paciência que poucos tiram de letra e com bom humor.
Não  é fácil perceber-se privado da mobilidade em um ambiente em que deveria  ocorrer o inverso. O automóvel, afi nal, foi inventado para transportar  as pessoas com mais rapidez que um cavalo, carroça ou trem e não para  imobilizá-las, como praticamente acontece hoje nas cidades mais  populosas do mundo. Não é novidade o fato de que, abarrotadas de  veículos, elas estão quase parando. Mas poucos percebem que junto com  isso há uma transformação social que não se resolve com políticas de  mobilidade urbana: as pessoas estão cada vez mais desumanas no trânsito e  não dá para engatar a marcha à ré e fugir dessa realidade.
O  incrível é que esse comportamento foi anunciado há tempos. Em 1950,  quando o Brasil somava 426 mil veículos (hoje somente a capital paulista  conta 7 milhões), a Walt Disney Company lançou o curta-metragem Motor  Mania retratando como o boapraça Pateta se transformava em um  "monstrorista" ao simples girar da ignição de seu carro. Bastava ele  pisar no acelerador para arreganhar os dentes, eriçar os pelos e sair  dirigindo como um desvairado, metendo a mão na buzina, xingando e  costurando os outros motoristas (para assistir ao fi lme, digite "Pateta  no Trânsito", no YouTube). Visionário que era, Disney não só fez uma  crítica ao comportamento ao volante como também já preconizava como as  relações entre os motoristas se agravariam.
Na defensiva  Essa mudança sobre rodas é reflexo do comportamento individual das  pessoas, aliado ao sistema de trânsito de cada país e à eficiência (ou  não) da fi scalização e punição dos infratores. "Na Suíça, os condutores  param diante da faixa de pedestres ou das placas ‘Pare’ até quando não  tem gente por perto", conta Patrícia Cabral, que vive mudando de país  devido às transferências do marido, executivo de multinacional. Em  contrapartida, em países megapopulosos como a Índia, a situação é  completamente inversa. Nova Délhi, que foi ranqueada em uma pesquisa da  IBM como a quinta cidade com o trânsito mais desgastante do mundo  (seguida por São Paulo), é um desafi o até para os mais destemidos. Além  dos elementos básicos do trânsito - pedestres, bicicletas,  motocicletas, carros, vans, carretas, ônibus e caminhões -, há riquixás,  carroças, charretes, vacas, cachorros, elefantes, cavalos, camelos,  cortejos fúnebres a pé e, claro, um mar de pessoas que, sem espaço nas  calçadas, invade as ruas de caminho rente ao meio-fi o. Tudo isso  embalado por um buzinaço incessante de enlouquecer qualquer um.
No  livro Por Que Dirigimos Assim?, o jornalista norte-americano Tom  Vanderbilt cita uma explicação do ex-líder de policiamento de trânsito  de Nova Délhi sobre o caos nas ruas: "A presença de uma vaca em uma área  urbana congestionada não representa um perigo (...), também força o  motorista a desacelerar. O impacto geral é reduzir a tendência de  exceder a velocidade e de um comportamento imprudente e negligente ao  volante." Ao ler isso, entendi por que não vi um acidente de trânsito  grave quando estive na Índia. Presenciei discussões entre motoristas (o  do nosso riquixá quando ele raspou num carro novinho, por exemplo) que  não resvalaram para a agressividade, fi caram só em alguns xingamentos.
Em  outros países, a situação não é bem essa. Aqui mesmo, no Brasil, uma  discussão mais acalorada entre condutores pode resultar em agressão  física e até em tiroteio. Por que isso acontece? Não porque a sociedade  ocidental ande armada até os dentes, mas porque as pessoas,  principalmente quem as que dirigem carros, saem de casa com um  pensamento bélico na mente. "Elas têm a sensação de que em algum momento  vão ser sacaneadas enquanto estão dirigindo e já se previnem contra  isso", diz Pedro Paulino, psicólogo do Instituto de Psicologia da  Universidade de São Paulo. Ou seja, já giramos a chave predispostos a  sermos atacados e a nos defender - "e reagir contra qualquer tipo de  violência é inato do ser humano", justifica Paulino.
Selva no asfalto  O resultado é um rosário de mau comportamento. Motoristas que fecham  cruzamentos, que jogam farol alto no carro da frente porque ele está  devagar, que aceleram tão logo o semáforo abre forçando a barra para o  pedestre atravessar correndo. Sem falar nos apressados crônicos que  fazem conversões proibidas, dirigem na contramão e não fi cam felizes se  não sentam a mão na buzina vez ou outra. É um imbróglio tremendo que  embute valores de hierarquia social e de pseudoproteção.
No  artigo "A Ideologia Social do Automóvel "(publicado no livro Apocalipse  Motorizado), o fi lósofo austro-francês André Gorz escreve: "Quando foi  inventado, o carro tinha a fi nalidade de proporcionar a alguns  burgueses muito ricos um privilégio totalmente inédito: o de circular  muito mais rapidamente do que todos os demais. Ninguém até então tinha  sequer sonhado com isso: a velocidade de todas as charretes era  essencialmente a mesma, fosse você rico ou pobre; as carruagens dos  ricos não eram muito mais velozes do que as carroças dos camponeses e os  trens carregavam todos à mesma velocidade (eles não possuíam  velocidades diferentes até começarem a competir com o automóvel e o  avião). Assim, até a virada do século, a elite não viajava a uma  velocidade diferente do povo. O automóvel iria mudar tudo isso: pela  primeira vez as diferenças de classe seriam estendidas à velocidade e  aos meios de transporte".
E assim criou-se a hierarquia social no  trânsito ainda tão visível em países como o nosso. Sair pela cidade a  bordo de um SUV (utilitário urbano), como aquele carrão da propaganda em  que o motorista se gaba de "fi - car mais alto que os outros" e se  sentir poderoso, dá ao condutor a falsa ideia de que ele pode mais e  está mais protegido. Por "poder mais" entenda que ele se acha no direito  de colar no motorista da frente porque é grande e de espremer um carro  forçando a entrada em sua frente sem sequer acionar a seta de direção.  Enquanto isso, quem dirige um automóvel com motor 1.0 ou com mais de  cinco anos de uso é encarado como uma mosca chata zunindo ao redor da  cabeça.
Você é o trânsito "O que  falta é as pessoas perceberem que cada uma é uma parte do trânsito e  que as relações entre elas deve ser de colaboração", afi rma o sociólogo  e consultor de trânsito Eduardo Biavati. Isso nada mais é que a  metáfora da engrenagem. Cada peça com seu lugar e função e o  entendimento comum de que tudo está interligado. Não dá mais para cada  pessoa achar que está sozinha na rua; também não há como fechar os olhos  para realidades tão simples como o espaço que os ciclistas vêm  conquistando. Eles fazem parte do sistema trânsito e não é passando com o  carro por cima de uma dúzia deles que a situação vai retroceder. "O  ciclista tem seus deveres e direitos assegurados pelo Código Nacional de  Trânsito", afi rma Thiago Benicchio, biker de carteirinha e fundador da  ONG Ciclocidade.
Segundo Benicchio, o motorista atento a pontos  básicos pode garantir a harmonia na sempre atribulada relação  veículo-bicicleta: manter distância lateral de 1,5 metro do ciclista,  não buzinar, dirigir em velocidade reduzida perto do ciclista e não  ultrapassá- lo para entrar numa rua à direita ou à esquerda. "Se as  pessoas não fazem isso com um caminhão, devem entender que ultrapassar  um ciclista em velocidade elevada para entrar à direita na sua frente é  muito mais perigoso, devido ao deslocamento de ar", explica.
O  maior problema nessa equação, como dito acima, está no fato de as  pessoas não se encararem como iguais. Em vez disso, parece que todos  saem às ruas com uma venda nos olhos ou com os olhos voltados para o seu  próprio umbigo e totalmente vulneráveis aos fatores que os fazem perder  a educação. Daí a partir para o ataque basta um vacilo do motorista da  frente. "Estudiosos da agressividade apontam que fatores como  aglomerações, calor, barulho e poluição correlacionamse a episódios de  agressão. Se pensarmos que um congestionamento pode reunir muitos desses  fatores, o trânsito é potencialmente estressor, levando muitas pessoas,  já expostas a outros estressores, ao seu limite emocional", explica  Cláudia Aline Soares Monteiro, da Universidade Federal do Maranhão,  autora de estudo sobre a agressividade do motorista brasileiro.
Segundo  ela, todos reagem diante de situações que perturbam e essas reações  variam. "Uma pessoa agressiva pode não reagir agressivamente diante de  algo estressante por estar em uma situação em que não há possibilidade  de agressão, ou por ter aprendido a reagir de forma não agressiva na  resolução de seus problemas. Enquanto que alguém calmo pode ter uma  reação agressiva por estar em uma situação que permite e até incentiva  isso." Resumindo, o trânsito é um ambiente em que as pessoas não somente  externam sua irritação e impaciência com um congestionamento, mas  também se aproveitam (inconscientemente) para descarregar outros  incômodos. O cenário, diga-se de passagem, é totalmente favorável,  porque em geral os motoristas estão sozinhos no carro e escondidos atrás  da película escura, garantindo seu anonimato.
Sem saída  Mas se simplesmente aceitarmos essa situação porque ela é assim, e  ponto, onde vamos parar? Mesmo que houvesse fi scalização e punição efi  cientes, só isso não seria sufi ciente. Não é a lei que ensina às  pessoas valores de cordialidade e de respeito aos outros. Isso vem do  berço. É com a família que aprendemos a ser educados, e nosso  comportamento como motoristas é um espelho da forma como nossos pais  dirigem. Afi - nal, as crianças aprendem por repetição e copiam os  adultos. Fechar um cruzamento, avançar sobre um pedestre e não dar  passagem não tem nada a ver com o excesso de veículos, com a enchente ou  a falta de transporte público de qualidade que desanima qualquer um a  trocar o carro pelo ônibus. "Além da educação, o modo de vida que  adotamos, cujos valores se pautam na competitividade, na velocidade e no  consumo, nos tem feito desconsiderar as noções de convívio social, de  respeito ao espaço público, de coletivo e de ética", afi rma Gislene  Maia de Macedo, psicóloga da Universidade Federal de Pernambuco, que  estudou a irritabilidade dos motoristas paulistanos.
No livro Fé  em Deus e Pé na Tábua, o sociólogo Roberto DaMatta aponta o  individualismo sobre rodas como um grande problema do trânsito. "A tão  falada questão da educação não diz respeito somente a cultivar a  paciência diante dos sinais e respeitá-los", escreve. "Trata-se de  ensinar que o sujeito ao lado existe como cidadão. Que ele, por ser  desconhecido, não pode ser tratado como um inferior ou um débil mental."  A mensagem de DaMatta é que devemos olhar ao redor e observar.
Leon  James, professor de psicologia da Universidade do Havaí, também defende  a importância de observar o outro e a si próprio. Anos de pesquisa  acerca das atitudes dos motoristas norte-americanos levaram- no a  concluir que a condução colaborativa é uma boa medida para melhorar o  convívio nas ruas. "É preciso que as pessoas treinem para ter uma nova  visão do trânsito. A solução para sofrer menos é adotar uma atitude de  tolerância em relação aos outros, baseada na conscientização de que a  competição prejudica a todos", afi rma.
O professor não está  pedindo para a vida ser só sorrisos nas ruas. O que ele propõe é que  cada um identifi que em si os três pontos que ele batizou de Estratégia  AWM (Acknowledge/ reconhecer, Witness/testemunhar, Modify/modifi car).  Nessa identifi cação, James ensina que a pessoa deveria pensar: Eu  reconheço que sou um motorista/ciclista/ motociclista ou pedestre  agressivo e tenho que mudar para ser um cidadão e uma pessoa melhor; eu  testemunho quando tenho sentimentos e pensamentos agressivos enquanto  dirijo; eu modifi co minhas emoções e pensamentos enquanto dirijo.  "Também é importante o motorista se colocar no lugar do pedestre, que  sofre com calçadas mal conservadas, com a ausência de faixas para a  travessia e com a agressividade de quem dirige", diz Eduardo Biavati. O  especialista em segurança no trânsito
também enfatiza que existe  uma grande margem de transformação na mão das pessoas. É questão de  colocar em prática. Para exemplifi car, ele cita a obrigatoriedade do  uso do cinto de segurança no Brasil. No começo, muitos resistiram e hoje  é hábito. Com a cordialidade e a educação no trânsito pode ser igual.  Quem sabe a princípio pareça meio boboca dar passagem ou não ultrapassar  o carro que está mais lento, mas, com o tempo, vai que a gentileza pega  de vez. É uma ideia nirvânica demais? Pode ser. Mas certamente é uma  das saídas para o caos no trânsito.
Livros  Fé em Deus e Pé na Tábua, Roberto DaMatta, Rocco Por Que Dirigimos  Assim?, Tom Vanderbilt, Campus/Elsevier Apocalipse Motorizado, Ned Ludd  (org.), Conrad
 
           Rush.  Era com essa palavra inglesa que no Brasil de décadas atrás nos  referíamos aos horários de pico no trânsito - o começo e o fim do dia. O  rush, naquela época, era traduzido em uma pessoa chegar 15 minutos mais  tarde a algum lugar. Sim, míseros 15 minutos eram sinal de que as  coisas não iam muito bem. Falar em atraso semelhante hoje equivale a  dizer que (ufa, graças a Deus!) chegamos na hora, fomos pontuais. O  tempo gasto em deslocamentos nos grandes centros urbanos tem piorado ano  a ano. Moradores de cidades como São Paulo, por exemplo, perdem cerca  de 2 horas e 40 minutos diários dirigindo num ritmo de tartaruga. É um  teste de paciência que poucos tiram de letra e com bom humor.
Não  é fácil perceber-se privado da mobilidade em um ambiente em que deveria  ocorrer o inverso. O automóvel, afi nal, foi inventado para transportar  as pessoas com mais rapidez que um cavalo, carroça ou trem e não para  imobilizá-las, como praticamente acontece hoje nas cidades mais  populosas do mundo. Não é novidade o fato de que, abarrotadas de  veículos, elas estão quase parando. Mas poucos percebem que junto com  isso há uma transformação social que não se resolve com políticas de  mobilidade urbana: as pessoas estão cada vez mais desumanas no trânsito e  não dá para engatar a marcha à ré e fugir dessa realidade.
O  incrível é que esse comportamento foi anunciado há tempos. Em 1950,  quando o Brasil somava 426 mil veículos (hoje somente a capital paulista  conta 7 milhões), a Walt Disney Company lançou o curta-metragem Motor  Mania retratando como o boapraça Pateta se transformava em um  "monstrorista" ao simples girar da ignição de seu carro. Bastava ele  pisar no acelerador para arreganhar os dentes, eriçar os pelos e sair  dirigindo como um desvairado, metendo a mão na buzina, xingando e  costurando os outros motoristas (para assistir ao fi lme, digite "Pateta  no Trânsito", no YouTube). Visionário que era, Disney não só fez uma  crítica ao comportamento ao volante como também já preconizava como as  relações entre os motoristas se agravariam.
Na defensiva  Essa mudança sobre rodas é reflexo do comportamento individual das  pessoas, aliado ao sistema de trânsito de cada país e à eficiência (ou  não) da fi scalização e punição dos infratores. "Na Suíça, os condutores  param diante da faixa de pedestres ou das placas ‘Pare’ até quando não  tem gente por perto", conta Patrícia Cabral, que vive mudando de país  devido às transferências do marido, executivo de multinacional. Em  contrapartida, em países megapopulosos como a Índia, a situação é  completamente inversa. Nova Délhi, que foi ranqueada em uma pesquisa da  IBM como a quinta cidade com o trânsito mais desgastante do mundo  (seguida por São Paulo), é um desafi o até para os mais destemidos. Além  dos elementos básicos do trânsito - pedestres, bicicletas,  motocicletas, carros, vans, carretas, ônibus e caminhões -, há riquixás,  carroças, charretes, vacas, cachorros, elefantes, cavalos, camelos,  cortejos fúnebres a pé e, claro, um mar de pessoas que, sem espaço nas  calçadas, invade as ruas de caminho rente ao meio-fi o. Tudo isso  embalado por um buzinaço incessante de enlouquecer qualquer um.
No  livro Por Que Dirigimos Assim?, o jornalista norte-americano Tom  Vanderbilt cita uma explicação do ex-líder de policiamento de trânsito  de Nova Délhi sobre o caos nas ruas: "A presença de uma vaca em uma área  urbana congestionada não representa um perigo (...), também força o  motorista a desacelerar. O impacto geral é reduzir a tendência de  exceder a velocidade e de um comportamento imprudente e negligente ao  volante." Ao ler isso, entendi por que não vi um acidente de trânsito  grave quando estive na Índia. Presenciei discussões entre motoristas (o  do nosso riquixá quando ele raspou num carro novinho, por exemplo) que  não resvalaram para a agressividade, fi caram só em alguns xingamentos.
Em  outros países, a situação não é bem essa. Aqui mesmo, no Brasil, uma  discussão mais acalorada entre condutores pode resultar em agressão  física e até em tiroteio. Por que isso acontece? Não porque a sociedade  ocidental ande armada até os dentes, mas porque as pessoas,  principalmente quem as que dirigem carros, saem de casa com um  pensamento bélico na mente. "Elas têm a sensação de que em algum momento  vão ser sacaneadas enquanto estão dirigindo e já se previnem contra  isso", diz Pedro Paulino, psicólogo do Instituto de Psicologia da  Universidade de São Paulo. Ou seja, já giramos a chave predispostos a  sermos atacados e a nos defender - "e reagir contra qualquer tipo de  violência é inato do ser humano", justifica Paulino.
Selva no asfalto  O resultado é um rosário de mau comportamento. Motoristas que fecham  cruzamentos, que jogam farol alto no carro da frente porque ele está  devagar, que aceleram tão logo o semáforo abre forçando a barra para o  pedestre atravessar correndo. Sem falar nos apressados crônicos que  fazem conversões proibidas, dirigem na contramão e não fi cam felizes se  não sentam a mão na buzina vez ou outra. É um imbróglio tremendo que  embute valores de hierarquia social e de pseudoproteção.
No  artigo "A Ideologia Social do Automóvel "(publicado no livro Apocalipse  Motorizado), o fi lósofo austro-francês André Gorz escreve: "Quando foi  inventado, o carro tinha a fi nalidade de proporcionar a alguns  burgueses muito ricos um privilégio totalmente inédito: o de circular  muito mais rapidamente do que todos os demais. Ninguém até então tinha  sequer sonhado com isso: a velocidade de todas as charretes era  essencialmente a mesma, fosse você rico ou pobre; as carruagens dos  ricos não eram muito mais velozes do que as carroças dos camponeses e os  trens carregavam todos à mesma velocidade (eles não possuíam  velocidades diferentes até começarem a competir com o automóvel e o  avião). Assim, até a virada do século, a elite não viajava a uma  velocidade diferente do povo. O automóvel iria mudar tudo isso: pela  primeira vez as diferenças de classe seriam estendidas à velocidade e  aos meios de transporte".
E assim criou-se a hierarquia social no  trânsito ainda tão visível em países como o nosso. Sair pela cidade a  bordo de um SUV (utilitário urbano), como aquele carrão da propaganda em  que o motorista se gaba de "fi - car mais alto que os outros" e se  sentir poderoso, dá ao condutor a falsa ideia de que ele pode mais e  está mais protegido. Por "poder mais" entenda que ele se acha no direito  de colar no motorista da frente porque é grande e de espremer um carro  forçando a entrada em sua frente sem sequer acionar a seta de direção.  Enquanto isso, quem dirige um automóvel com motor 1.0 ou com mais de  cinco anos de uso é encarado como uma mosca chata zunindo ao redor da  cabeça.
Você é o trânsito "O que  falta é as pessoas perceberem que cada uma é uma parte do trânsito e  que as relações entre elas deve ser de colaboração", afi rma o sociólogo  e consultor de trânsito Eduardo Biavati. Isso nada mais é que a  metáfora da engrenagem. Cada peça com seu lugar e função e o  entendimento comum de que tudo está interligado. Não dá mais para cada  pessoa achar que está sozinha na rua; também não há como fechar os olhos  para realidades tão simples como o espaço que os ciclistas vêm  conquistando. Eles fazem parte do sistema trânsito e não é passando com o  carro por cima de uma dúzia deles que a situação vai retroceder. "O  ciclista tem seus deveres e direitos assegurados pelo Código Nacional de  Trânsito", afi rma Thiago Benicchio, biker de carteirinha e fundador da  ONG Ciclocidade.
Segundo Benicchio, o motorista atento a pontos  básicos pode garantir a harmonia na sempre atribulada relação  veículo-bicicleta: manter distância lateral de 1,5 metro do ciclista,  não buzinar, dirigir em velocidade reduzida perto do ciclista e não  ultrapassá- lo para entrar numa rua à direita ou à esquerda. "Se as  pessoas não fazem isso com um caminhão, devem entender que ultrapassar  um ciclista em velocidade elevada para entrar à direita na sua frente é  muito mais perigoso, devido ao deslocamento de ar", explica.
O  maior problema nessa equação, como dito acima, está no fato de as  pessoas não se encararem como iguais. Em vez disso, parece que todos  saem às ruas com uma venda nos olhos ou com os olhos voltados para o seu  próprio umbigo e totalmente vulneráveis aos fatores que os fazem perder  a educação. Daí a partir para o ataque basta um vacilo do motorista da  frente. "Estudiosos da agressividade apontam que fatores como  aglomerações, calor, barulho e poluição correlacionamse a episódios de  agressão. Se pensarmos que um congestionamento pode reunir muitos desses  fatores, o trânsito é potencialmente estressor, levando muitas pessoas,  já expostas a outros estressores, ao seu limite emocional", explica  Cláudia Aline Soares Monteiro, da Universidade Federal do Maranhão,  autora de estudo sobre a agressividade do motorista brasileiro.
Segundo  ela, todos reagem diante de situações que perturbam e essas reações  variam. "Uma pessoa agressiva pode não reagir agressivamente diante de  algo estressante por estar em uma situação em que não há possibilidade  de agressão, ou por ter aprendido a reagir de forma não agressiva na  resolução de seus problemas. Enquanto que alguém calmo pode ter uma  reação agressiva por estar em uma situação que permite e até incentiva  isso." Resumindo, o trânsito é um ambiente em que as pessoas não somente  externam sua irritação e impaciência com um congestionamento, mas  também se aproveitam (inconscientemente) para descarregar outros  incômodos. O cenário, diga-se de passagem, é totalmente favorável,  porque em geral os motoristas estão sozinhos no carro e escondidos atrás  da película escura, garantindo seu anonimato.
Sem saída  Mas se simplesmente aceitarmos essa situação porque ela é assim, e  ponto, onde vamos parar? Mesmo que houvesse fi scalização e punição efi  cientes, só isso não seria sufi ciente. Não é a lei que ensina às  pessoas valores de cordialidade e de respeito aos outros. Isso vem do  berço. É com a família que aprendemos a ser educados, e nosso  comportamento como motoristas é um espelho da forma como nossos pais  dirigem. Afi - nal, as crianças aprendem por repetição e copiam os  adultos. Fechar um cruzamento, avançar sobre um pedestre e não dar  passagem não tem nada a ver com o excesso de veículos, com a enchente ou  a falta de transporte público de qualidade que desanima qualquer um a  trocar o carro pelo ônibus. "Além da educação, o modo de vida que  adotamos, cujos valores se pautam na competitividade, na velocidade e no  consumo, nos tem feito desconsiderar as noções de convívio social, de  respeito ao espaço público, de coletivo e de ética", afi rma Gislene  Maia de Macedo, psicóloga da Universidade Federal de Pernambuco, que  estudou a irritabilidade dos motoristas paulistanos.
No livro Fé  em Deus e Pé na Tábua, o sociólogo Roberto DaMatta aponta o  individualismo sobre rodas como um grande problema do trânsito. "A tão  falada questão da educação não diz respeito somente a cultivar a  paciência diante dos sinais e respeitá-los", escreve. "Trata-se de  ensinar que o sujeito ao lado existe como cidadão. Que ele, por ser  desconhecido, não pode ser tratado como um inferior ou um débil mental."  A mensagem de DaMatta é que devemos olhar ao redor e observar.
Leon  James, professor de psicologia da Universidade do Havaí, também defende  a importância de observar o outro e a si próprio. Anos de pesquisa  acerca das atitudes dos motoristas norte-americanos levaram- no a  concluir que a condução colaborativa é uma boa medida para melhorar o  convívio nas ruas. "É preciso que as pessoas treinem para ter uma nova  visão do trânsito. A solução para sofrer menos é adotar uma atitude de  tolerância em relação aos outros, baseada na conscientização de que a  competição prejudica a todos", afi rma.
O professor não está  pedindo para a vida ser só sorrisos nas ruas. O que ele propõe é que  cada um identifi que em si os três pontos que ele batizou de Estratégia  AWM (Acknowledge/ reconhecer, Witness/testemunhar, Modify/modifi car).  Nessa identifi cação, James ensina que a pessoa deveria pensar: Eu  reconheço que sou um motorista/ciclista/ motociclista ou pedestre  agressivo e tenho que mudar para ser um cidadão e uma pessoa melhor; eu  testemunho quando tenho sentimentos e pensamentos agressivos enquanto  dirijo; eu modifi co minhas emoções e pensamentos enquanto dirijo.  "Também é importante o motorista se colocar no lugar do pedestre, que  sofre com calçadas mal conservadas, com a ausência de faixas para a  travessia e com a agressividade de quem dirige", diz Eduardo Biavati. O  especialista em segurança no trânsito
também enfatiza que existe  uma grande margem de transformação na mão das pessoas. É questão de  colocar em prática. Para exemplifi car, ele cita a obrigatoriedade do  uso do cinto de segurança no Brasil. No começo, muitos resistiram e hoje  é hábito. Com a cordialidade e a educação no trânsito pode ser igual.  Quem sabe a princípio pareça meio boboca dar passagem ou não ultrapassar  o carro que está mais lento, mas, com o tempo, vai que a gentileza pega  de vez. É uma ideia nirvânica demais? Pode ser. Mas certamente é uma  das saídas para o caos no trânsito.
Livros:
Fé em Deus e Pé na Tábua, Roberto DaMatta, Rocco
Por Que Dirigimos Assim?, Tom Vanderbilt, Campus/Elsevier
Apocalipse Motorizado, Ned Ludd (org.), Conrad
 
           
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